Calças por dentro das meias, quem nunca usou?

Ainda no Ginasial (primeiro grau, hoje) eu usava uniforme que era uma camisa branca, com o escudo do colégio, para fora das calças, e calça caqui meio beje escuro.

Frente de acesso ao Colégio Brasil

Frente de acesso ao Colégio Brasil

Morava na Praia de Icaraí, na Rua Otávio Carneiro quase esquina da praia e o Colégio ficava no bairro do Fonseca, hoje próximo da subida para a ponte Rio/Niterói.

Nosso meio de transporte eram as lotações que faziam um trajeto circular passando na Praia de Icaraí, umas indo pelo Centro de Niterói, outras indo pela Rua Mariz e Barros e Santa Rosa até o Fonseca.

Exemplo do veículo de transporte chamado de lotação
Exemplo do veículo de transporte chamado de lotação

Na lotação iam duas filas de assentos duplos com quatro bancos de cada lado e  um assento no fundo para cinco pessoas e o resto ia empilhado em pé.

Lotação, anos 60

Lotação, anos 60

A porta era aberta por um sistema de maçaneta que era puxada e/ou empurrada para abrir ou fechar a porta.

O  tempo do trajeto variava, mas na saída da escola com muitos pegando a mesma condução acredito que uns quarenta, cinquenta minutos de um ponto ao outro, utilizando a rota de Santa Rosa.

Nós, os mais bagunceiros, procurávamos sentar no último banco para ir zoando com o resto dos colegas que usavam o mesmo transporte.

Digo isso tudo e agora acrescento o trajeto original daquele terrível dia, para que tenham a possibilidade de sentir pelo que passei e que passo a narrar.

Rota, em vermelho que se fazia a época
Rota, em vermelho que se fazia a época

Pesquisando no Google e refazendo o trajeto não bate com o que era a época em virtude do crescimento da cidade, mudança nos veículos de transporte e mãos das ruas percorridas.

Então tracei no mapa, em vermelho a rota do lotação que peguei naquele dia e em preto o caminho percorrido a pé pela praia até minha casa.

Ao entrar na lotação e naquele brigalhada para ver quem conseguia o último banco já senti um borbulhar estranho na minha barriga.

Já sentado e com a lotação totalmente cheia, aquele borbulhar começou a aumentar. Aí a dúvida:

– volto para o Colégio, o que seriam uns poucos quarteirões a pé, ou

– continuo a viagem apostando todas as minha fichas em que não ia piorar.

Fiz a segunda opção, certo que com a bagunça na lotação logo minha barriga se acalmaria . Ledo engano.

Na subida da Rua 22 de Novembro a primeira cólica. A bagunça ficou em segundo plano já que tínhamos percorrido menos de um terço da viagem e a situação tendia a piorar.

Parei de brincar, mas ninguém notou, tal era a bagunça mas meu medo era que alguém descobrisse, pois logo um engraçadinho ia gritar:

– ‘Tem um CAGÂO aqui!”- e eu visualizando todos os dedos e olhares apontando para mim.

No final da descida da Rua 22 de Novembro, aquela primeira cólica e a trancada. Você sabe como é aquela ação instintiva de evitar uma descida geral dos bolinhos comidos na cantina da escola, principalmente o de ovo cozido.

Maldizendo a escolha do último banco senti as primeiras gotas de suor escorrendo pelo rosto, e o pavor tomando conta do cérebro em vista de que a lotação não esvaziava.

Chegada em Santa Rosa, 3/5 do trajeto percorrido e a coisa já estava quase incontrolável. Na ânsia de ter mais tempo, movimentos contínuos com a esfincter anal(vulgo anus) no sentido de retornar com o olho d’água(figura de retórica para diarreia violenta) que insistia em deixar meu corpo.

E eu pensando “Sai não, você me pertence!” Acho que nesse momento não só o suor rolava pelo meu rosto como lágrimas de quem já previa a desgraça consumada.

Entrando na Rua Mariz e Barros no sentido Praia de Icaraí, e eu pensando: -“Falta tão puco!”

Já assumindo que não ia dar enfiei as calças para dentro das meias de forma a não permitir que vazasse no chão.

Quem já teve esse problema se não fez isso foi deixando um rastro pela calçada.

Nesse momento preciso esclarecer que era um dia de semana e no horário do almoço o que fazia da praia um território quase vazio.

Praia de Icaraí nos tempos de hoje
Praia de Icaraí nos tempos de hoje

Um quarteirão para entrar na Praia de Icaraí e não teve esforço que segurasse, dei um pulo, corri para o motorista pedi que parasse e desci. Descemos eu e tudo que estava no meu intestino numa cachoeira similar as de Foz do Iguaçu.

Cabeça baixa olhando para o chão, o que evidenciava mais ainda a desgraça pelo cheiro que subia, andando o mais rápido que podia meio com as pernas abertas atravessei a rua em direção á praia.

Minha primeira intenção era me jogar no mar pois se não morresse afogado parte do acontecido poderia ser despejado lá, junto com o que prenunciava ser uma segunda leva.

Andei pela areia os três quarteirões faltantes até com uma certa tranquilidade, apenas preocupado com a segunda leva chegando.

Em frente a Rua Otávio Carneiro a dúvida cruel, continuo como se nada estivesse acontecendo ou dou uma corrida até em casa. Uma segunda cólica seguida de outra trancada decidiram por mim pela corrida, acontecesse o que acontecesse.

Entrei em casa direto para o banheiro dos fundos que eram usados pelas empregadas e nunca um  local ficou tão parecido com o céu, eu ali sentado nos estertores de uma diarreia mas feliz por ter chegado em casa. Todo sujo, mas feliz de estar no aconchego do lar e principalmente longe dos olhares dos colegas.

Ainda tive que ouvir muita risada e frases como :- “Eu não vou lavar isso não”, ou “É melhor tocar fogo de uma vez” relativas as minhas calças, cueca e meias.

Mas como diz o velho ditado :-‘Lavou? Está novo.”

Apertos aéreos na amazônia

Entre os vários sobressaltos que já vivi, em viagens de avião, esse foi um dos piores.

Deve-se ressaltar que o Comandante da aeronave era um dos de melhor conceito na amazônia.

No vídeo, porém, faltou falar que quase chegando em Manaus em uma das quedas do avião no vácuo, abriu-se a porta que dava para cabine, e lá estava o comandante com os pés apoiados no painel do avião, com as duas mãos entrelaçadas atrás da cabeça e o coitado do co-piloto se virando para manter o avião estável.

Se é que isso era possível !

 Vídeo apresentado no programa Estúdio I+ de 14 de setembro de 2012

Rota do voo - Porto Trombetas x Cacheira da Porteira x Manaus

Rota do voo – Porto Trombetas x Cacheira da Porteira x Manaus

URGENTE : Precisa-se de um amigo

Aside

Sobre as mídias sociais

Me segue! Para que?

Me segue! Para que?

Amigos e seguidores(que nome horrível, quem tem seguidor é seita), quem são vocês que fazem parte dos 175 amigos do Facebook e cerca de 97 meus seguidores no Twitter, e outros tantos do Instagram e do Tumblr?

URGENTE: Preciso de um amigo com disponibilidade para ouvir. Obrigado

URGENTE: Preciso de um amigo com disponibilidade para ouvir. Obrigado

Durante dois dias coloquei,  junto com uma imagem do Pequeno Príncipe, a seguinte frase :

-“URGENTE: preciso de um amigo que esteja disponível para me ouvir!”

Sabem quantos responderam? ZERO

Então , volto a perguntar, QUEM SÃO VOCÊS QUE ESTÃO AÍ DO OUTRO LADO?

Da minha parte eu procuro ler tudo que passa em todas as mídias e cheguei a seguinte conclusão: os posts são fotos, ou seja tudo que você vê ou lê são instantâneos do passado, fotos amarelecidas de quem pode ter morrido por falta de ATENÇÃO.

De certa forma, eu também não cumpro meu papel pois não dá para estar o dia todo lendo outdoors com reflexões políticas religiosas ou textos que não fazem o menor sentido, pinçados de locais especializados em frases filosóficas de bêbados.

No twitter então é pior eu sigo 71 pessoas e só entre abrir dar uns dois minutos

Urgente, preciso de um amigo som disponibilidade para ouvir. Obrigado

Urgente, preciso de um amigo som disponibilidade para ouvir. Obrigado

e voltar já passaram, sei lá umas dez mensagens, e olha que eu começo de cima para baixo, mas certamente, não dou conta de tudo. Especificamente no twitter procuro seguir pessoas ou entidades informativas o que faz sentido eventualmente perder uma ou outra notícia.

Tem também o problema dos 140 caracteres, e que muitos não usam programas que expandem a capacidade e fica parte 1, parte 2, parte 3, aí passam dez mensagens e vem a parte 5 e você tem que voltar para saber qual era a parte 4 que deve ter pulado.

Ou será que alguém, de sacanagem, pulou um só para deixar você zureta?

E tem também aquela personalidade que cria seu perfil e não diz se é publicidade, noticiário ou pessoal. Aí você escreve para ela pensando ser pessoal e não recebe resposta. Tem também aqueles que só respondem elogios, não são capazes de contrapor uma crítica.

O que você vai fazer com centenas, milhares de pessoas que querem falar, trocar uma ideia? Como dizia Ibrahim Sued, colunista de várias décadas principalmente 60’s e 70’s, na minha lembrança:

“Os cães ladram e a caravana passa”

Ou seja o dono do perfil é o rei da cocada preta, só quer que você seja um número na estatística dele, não dá a mínima pelo que você pensa.

Se é o perfil profissional façam como alguns, acrescentem um indicativo como @fulanodetalGN ou @fulanadetal_OGLOBO. Pronto você já sabe que é o jornalista emitindo 140 caracteres de opinião. Não é a pessoa.

Eu, que recebo uns poucos informes de que estão me seguindo, vou no perfil, afinal tenho tempo para isso, e vejo os twitters que essa pessoa postou, se faz sentido para mim mesmo que não bata com meu pensamento eu deixo se não eu bloqueio, e fim de papo

Quanto ao Instagram faço o mesmo e recomendo, quer ser meu amigo trocar palavras, eu vou lá no perfil, se estiver bloqueado peço para ser amigo, se não abrir para mim já bloqueio e se abrir e eu não sentir conexão, bloqueio do mesmo jeito.

Quando coloquei a solicitação de um amigo ouvinte eu pensei em usar outras frases :

– ADEUS MUNDO CRUEL!

– ESTOU INDO PARA O ANDAR DE CIMA!

O máximo que eu ia conseguir era umas poucas curtidas no Facebook.

Imagine só alguém avisando que vai se matar e dez mil curtindo. Aliás quando tem notícia trágica, você “curte”?

Talvez a melhor frase para encerrar hoje seja a do Péricles, criador da charge o Amigo da Onça, que se suicidou em 31 de dezembro de 1961 :

-“MORRO SÓ, APESAR DE CERCADO DE AMIGOS

E ele não tinha nem Facebook nem Twitter!

Sem palavras

Sem palavras

O motor de popa desaparecido

Voltemos à época de nossa vida em Porto Trombetas. Ao final de cada dia eu e minha esposa íamos 15_boto-vermelho_Inia-geoffrensis_credito_Projeto-Botopara a balsa de atracação ficar olhando os botos que nadavam no Rio Trombetas.

A balsa também servia para atracar as “voadeiras” , que são barcos finos e compridos de alumínio ou madeira com motor de popa. que os moradores, da região costumam usar para locomoção, passear ou pescar, nos lagos e igarapés ao redor.

Quem tinha uma dessa eram dois engenheiros da empreiteira, que costumavam sair para pescar ao fim do expediente. Acontece que bem antes do término do expediente caiu uma chuva “amazônica”.

A sorte é que dura pouco, voltando logo o sol a brilhar.

Ao chegar na margem os barcos, que ficam no seco, você tem que retirar toda a água, quase uma piscina, para por a voadeira n’água e depois pegar o motor de

Voadeira

Voadeira

popa no carro e colocá-lo no barco. Até aí tudo bem, voadeira na água motor colocado e partiram para pescar.

A partir de agora passo a relatar a estória como me foi contada e, anos depois, confirmada por um dos donos do barco.

É preciso, também falar que a balsa era usada pelos “peões”(trabalhadores da obra) para ficarem mergulhando no rio porque a margem tinha uma descida abupta e que a profundidade deveria ser de mais de cinco metros.

No finzinho da tarde, após a pescaria, atracando  na balsa os movimentos eram :

Nossa balsa - em outro momento

Nossa balsa – em outro momento

– um descia na balsa;

– o que ficava no barco, então, ia passando os peixes, as varas de pescar e por fim o motor de popa, para depois puxar a voadeira para terra e esvaziar a água que havia entrado;

Acontece que nesse dia esse engenheiro que ficou no barco com a incumbência de passar o motor, após afrouxar os parafusos que o prendia ao barco escorregou e o motor afundou no rio.

Aí foi aquele corre, corre, pega o motor pega uma corda, quem vai pular para amarrar a corda no motor ? Até que um peão animado pela recompensa de algo como R$10,00, oferecidos pelo dono, pegou a corda e mergulhou.

EXPECTATIVA !

Ele volta e mergulha mais umas duas ou três vezes até que na última ele diz :

– ” Olha, Doutor, está muito escuro, está muito fundo e eu acho que não vai dar para continuar tentando!”

Desesperado o dono replica, tirando a nota do bolso :

– ” Pago R$50,00 para quem conseguir!

O peão que estava mergulhando : -” Cinquenta, Doutor?”

– “Cinquenta!” confirmou o dono.

Nesse momento o peão, já saindo da água, fala :

– ” Então pode puxar a corda que já está amarrado!”

Todos que estavam vendo a cena caíram na gargalhada, menos o dono cujo rosto refletia um misto de alívio, por ter o motor de volta e, consternação por ter sido engabelado pelo peão.

Foi só puxar a corda subir o motor para a balsa, pagar o peão, que saiu feliz da vida pois naquela noite ia tomar muitas cervejas na zona de prostituição que existia do outro lado do igarapé*, nos fundos do acampamento.

*Dic.: – Igarapé: Estreito ou pequeno canal natural entre duas ilhas, ou entre uma ilha e a terra firme, que só dá passagem a embarcações pequenas.

Nosso avião caiu !

Por mais que tente me lembrar não consigo precisar a data do acidente se 1975 ou 1976.

Nos já estávamos alojados em Porto Trombetas e como falei em Como fui parar na selva amazônica , nossa Companhia tinha um contrato de aluguel de aviões com uma empresa de táxi aéreos em Santarém e fazíamos esse trecho PTR/Oriximiná/STM e volta pelo menos uma vez a cada quinze dias. No entanto, todas as segundas eles traziam o “rancho” como falávamos: legumes, ovos, verduras além da correspondência, o malote e meus jornais da semana anterior.

Porto Trombetas/Oriximiná/Santarém

Porto Trombetas/Oriximiná/Santarém

Eu costumava dizer : – ” Se o houver uma terceira guerra mundial eu só vou saber uma semana depois!”

Essa empresa, a Real, era de propriedade de dois sócios os Comandantes Flávio e o Peres, excelentes pilotos e conhecedores da região onde voávamos. Ficamos muito amigos chegando a conhecer a família de ambos. Essa informação é importante para os fatos que se seguem.

Geralmente íamos direto para Santarém, a serviço, ficávamos lá por alguns dias e depois retornávamos via Oriximiná ou direto para Porto Trombetas. Sempre eu e minha esposa.

Vista aérea de Oriximiná - sobrevoo

Vista aérea de Oriximiná – sobrevoo

Para pararmos em Oriximiná era preciso que o avião ficasse sobrevoando, em baixa altitude a cidade até identificarmos que um carro(táxi) se deslocava pela estrada que ia até o aeroporto. Feito isso fazíamos o poso no aeroporto de terra da cidade.

Posávamos e ficávamos aguardando que o “táxi” chegasse. Normalmente, como era um bimotor iam dois carros. Todos íamos para a cidade para tratar junto ao comércio e ao Banco da Amazônia, único existente, dos assuntos da empresa. Algumas vezes levávamos grandes somas de dinheiro para pagamento do pessoal.

Naquela véspera quem pilotava o avião era o comandante Peres, eu ia na cadeira do co-piloto e minha esposa no banco atrás de mim.

Ao fundo a pista de Trombetas vista da cabine do avião

Ao fundo a pista de Trombetas vista da cabine do avião

O processo de aterrissagem era o mesmo, fazíamos um sobrevoo pelo acampamento até ver que um carro se dirigia para o aeroporto. aí então o piloto manobrava para a aproximação da pista e fazia o pouso. Nunca tivemos um acidente, exceto um imprevisto que deixo para contar mais tarde.

Durante o voo o Comandante Peres nos contou da viagem que faria, com o avião em que estávamos , para o Sul. Ia visitar os parentes e fazer a manutenção e renovar a vistoria(não sei o nome correto) deste que estava para vencer.

Foto da asa esquerda do nosso avião tirada em outra viagem

Foto da asa esquerda do nosso avião tirada em outra viagem

Quando digo que estava para vencer não quero dizer dias e nem semanas ainda faltavam alguns meses e os dois sócios eram muito cuidadosos com isso. Não só pelo manutenção da qualidade dos serviços, mas também a manutenção de um patrimônio duramente construído voando na amazônia.

Em geral pousávamos em direção da cabeceira onde ficava o portão da pista. Ela era cercada para evitar que animais entrassem e pudessem prejudicar um pouso. Parávamos próximos do portão, o comandante desligava os motores, descíamos e ficávamos conversando até a chegada do carro que ia nos buscar e que normalmente aproveitava para mandar algum documento ou malote e , após entrarmos no carro e fecharmos as janelas, ele virava o avião em direção à outra cabeceira acelerava e levantava voo deixando para trás uma enorme nuvem de fumaça.

Naquela véspera o Comandante Peres não desligou o motor esquerdo e quando viu que a caminhonete estava chegando ao portão, se despediu pedindo desculpas ainda tinha de ir em uma festa no 8º B.E.C. ( Batalhão de Engenharia e Construção, do Exército Brasileiro) convidado pelo Comandante e no dia seguinte partiria para o Sul logo ao raiar do dia.

Também voltamos para nossa casa em Porto Trombetas.

No dia seguinte, logo ao chegar nos escritórios, o Gerente de Administração estava me esperando do lado de fora da sala. Encostado na pilastra, fumando um cigarro, com o jeitão de sempre eu achei. Saltei do Jipe e ele me chamou:

– “Araken, tenho que te dar uma notícia ruim, um avião da Real caiu!” – Fred, como chamávamos era assim, direto sem rodeios.

Imediatamente perguntei – “Feridos?”

– “Todos mortos!” – respondeu

Sem imaginar que o pior ainda estava por vir não quis continuar com a pergunta óbvia, quem era o piloto. Não precisou.

-“Foi o Comandante Peres! Ele a esposa, a esposa, as filhas e a sogra do Flávio e mais um bebezinho de colo!” Fred era assim, ele devia estar sofrendo muito mais pois estava ali em Porto Trombetas desde o início das atividades e continuava agora na retomada da construção.

Devo ter ficado em choque e não me lembro se fui para minha sala ou voltei para casa. O certo é que tinha que dar a notícia para minha esposa.

Os meus problemas eram dois : lidar com a notícia e como passá-la para minha esposa, afinal o Comandante Peres e nós tínhamos voado no mesmo avião que caíra.

Avião que caiu foto tirada da cabine

Avião que caiu foto tirada da cabine

Um segundo para respirar. Anos depois, no Orkut reencontro o Comandante Flávio e sua segunda esposa ficamos amigos virtuais e ela, olhando minhas fotos de Porto Trombetas identificou o prefixo do avião que caiu com o Comandante Peres e a família do Comandante Flávio.

Retornando eu ainda estava com o problema da notícia para minha esposa.

Decidi seguir o caminho do Fred e falar tudo de uma vez.

O fato é que não dava para esperar o almoço e chegando em casa cedo ou eu estava doente ou havia alguma notícia urgente.

Entrei em casa e fui falando: – ” Um avião da Real caiu e o piloto era o Peres!”

Só restava ficarmos ali, só nos dois, chorando na imensidão vazia da selva amazônica. Passados uns instantes, não sei quanto, sentamos na rede da sala e me preparei para contar toda a realidade.

Só me restava, como Gerente de Controle e Finanças, autorizar a compra e o envio de uma coroa de flores para os mortos.

Os corpos foram velados em Santarém e embarcados em um avião da FAB para serem enterrados no Sul. Antes do Búfalo decolar um avião da Real sobrevoou a pista do aeroporto de Santarém deixando cair pétalas de rosas.

Não foi um avião nosso, foi nosso avião, nosso amigo, nosso Comandante com os quais havíamos voado na véspera.

A onça de Porto Trombetas – Pará

Talvez, para entender melhor, valha a pena ler o episódio Como fui parar na selva amazônica .

Passamos uns quinze dias no “Pioneiro”, como era chamada a casa de hóspedes

Varanda do Pioneiro eu e minha esposa

Varanda do Pioneiro eu e minha esposa

de Porto Trombetas aguardando o término das obras em nossa futura casa na vila provisória.

Assim que ficou pronta nos mudamos para ela , que era rodeada com uma

Vista aérea da vila - minha casa à direita

Vista aérea da vila – minha casa à direita

cerca de mais de 1,70 m de altura e, nas quinas externas do teto da casa, lâmpadas forte que davam uma visão do entorno da cerca (da cerca para fora).

Como o gerador desligava às dez da noite deixávamos nosso quarto fechado com o ar condicionado ligado no máximo desde a hora do almoço. Ao irmos dormir vestíamos pijamas de flanela, trancávamos a porta e imaginávamos que era “Petrópolis no inverno”.

Além disso, por conta da informação de que onça gostava de se alimentar de pequenos animais, prendíamos Avon e Cayena (nossos cachorros) no banheiro.

Para visualizar o contexto do fato é preciso falar sobre dois componentes importantes :

Mucura

Mucura

– A mucura. A mucura é um gambá amazônico que, como sabemos, tem hábitos noturnos. Nossa casa era forrada por folhas de compensado presas em vigas de madeira o que para as mucuras parecia uma pista de corrida com obstáculos. Ficavam correndo em círculos no forro e entre uma galopada e outra um milésimo de silêncio, que era quando pulavam as vigas de madeira e isso, no início, foi difícil de acostumar.

– A Lixeira. Cerca de uns 200 metros de nossa casa foi designado um local para depósito de lixo e restos das obras de manutenção e conservação da vila. Frequentemente vinha uma pá carregadeira e levava todo o material para juntar com o resto do lixo de todas as áreas do acampamento. Quando fui, pela primeira vez ver onde depositaria o lixo, notei uma série de pegadas no chão que não me deixaram nada confortável tinham as grandes, de onça, e as menores de maracajás (espécie de gato do mato).

Assim, lixo chama onça que gosta de comer, entre outros animais, mucuras e cachorros.

Naquela noite embarcamos para “Petrópolis” cedo, ainda com o gerador ligado. Lá pelas tantas eu comecei a ouvir passadas em torno da casa. Sem acordar minha esposa fui ver, através da tela contra mosquitos, se era sonho ou …. ERA REALIDADE! Não só era realidade como contornava a casa várias vezes.

onça pintada

onça pintada

Nesse momento minha esposa acordou com o que parecia um berro de onça(inexplicável esse barulho). Eu tinha em casa uma espingarda calibre 22mm e uma pistola 635, que andava na minha pochete,, dei a pistola para ela com instruções de só atirar para cima e com a espingarda nas mãos acompanhei os passos e berros da onça que nunca chegava na zona iluminada e rodando de janela em janela para ver se ela se aproximava.

Do quarto ouço quase um sussurro :

-“Preciso fazer xixi !”que respondi no mesmo tom :

– “Faz na cama mesmo, não vai abrir a porta e soltar os cachorros!”

Quanto tempo dura uma eternidade? Exatamente o tempo que fiquei rodando de janela em janela procurando ver a onça e minha esposa se apertando para não molhar a cama.

Repentinamente os barulho dos passos param, mais um berro, voltam os passos, dessa vez em direção a janela, eu posicionado com a espingarda apoiada no ombro, e os passos chegando na zona de claridade……

CAÍ PARA TRÁS !

Não parava de rir e minha esposa saindo do quarto sem saber do que se tratava,  eu falei :

-¨Olha nossa onça aí fora!” Olhou e correu para o banheiro.

Os cachorros saíram, latiram, e eu rindo pois a nossa “onça” não passava de um bezerro, mugindo por sua mãe, que havia sido deixado para trás pelo vaqueiro que cuidava do rebanho, do qual todo o acampamento era suprido de carne.

Bezerro

Bezerro

Dessa noite em diante não tinha mucura, onça ou qualquer barulho que nos tirasse a paz de nosso sono em “Petrópolis”

O dente com nervo exposto e a picada de cobra

Como expliquei em Nosso avião caiu ! todas as segundas feiras recebíamos as correspondências, o malote e nosso rancho semanal, além dos filmes, mas essa parte é outro capítulo.

Houve um dia que o avião das segundas já havia levantado voo de volta para aviaodecolando Santarém e eu, no meio do almoço, quebrei um dente siso ficando com o nervo exposto. Coincidentemente estávamos sem rádio e telégrafo, ou seja sem comunicação com nossos

Telégrafo

Telégrafo

escritórios para chamar um táxi aéreo que me levasse para Santarém e o avião do dia já havia partido.

Não havia muitas opções :

1 – pegar o motor(como chamávamos o barco maior com cabine e espaço para várias redes) e , numa viagem de seis horas ir até Oriximiná e me entregar nas mãos de um farmacêutico para que ele arrancasse o dente;

2- pegar o motor e numa viagem de 14:00 horas ir até Santarém para uma  consulta de emergência para arrancar o dente;

3 – ficar esperando uma semana pela vinda de outro avião trazendo o rancho e ir para uma consulta em Santarém.

4 – esperar que, com sorte, alguém viesse até o acampamento, de avião, e eu pegasse uma carona até Santarém;

Nosso motor e ao lado uma voadeira

Nosso motor e ao lado uma voadeira

Pesando o meu lado e o da empresa as  hipóteses 1 e 2 iriam demandar muito tempo, deslocar um barco com dois tripulantes e  deixar o acampamento sem locomoção por pelo menos três dias;

Só me restava a hipótese 3 que era ficar com o nervo exposto por uma semana esperando que meu bilhete fosse premiado(hipótese 4) com a vinda de alguém de avião, de Santarém, para que eu pudesse pegar uma carona.

Para minha sorte nossa farmácia tinha um bom estoque de remédios contra a dor. Era só ir lá e ler a bula escolhendo o que parecesse mais potente e indicado.

Nesse momento você não deve estar entendendo direito : farmácia, estoque, ler a bula, escolher o mais forte.

Como, não tinha nenhum médico nesse lugar?

Não, não só não tinha um médico como também nem um enfermeiro.

Explico: o escritório de Belém havia contratado um enfermeiro para dar suporte para nós, já que até que ele chegasse, e depois que ele foi embora, não ficássemos a mercê de ler as bulas dos medicamentos e da intuição do Fred, nosso Gerente Administrativo.

Acontece que logo após a chegada dele aportou na nossa balsa um casal com

Barco com uma família

Barco com uma família

uma menina que havia sido picada de cobra venenosa. Eu só vi a menina entrando na farmácia nos braços do Fred e que sua perna estava ficando azulada.

Daí em diante o que aconteceu lá é uma estória que repasso para vocês : haviam feito um torniquete na perna da menina e  Fred colocou a menina na maca e entregou o caso ao enfermeiro.

– ” E eu faço o que?” – perguntou o enfermeiro para o Fred que a esta altura já tinha mandado um carro buscar um soro antiofídico no geladeira da Casa de Hóspedes onde era guardado para não perder a validade e quando o gerador era desligado guardavam no freezer.

Com a delicadeza que era lhe peculiar, Fred respondeu : – “Porra, caralho, você não é enfermeiro?”

– ” Sou enfermeiro do trabalho, nunca lidei com isso aí, disse, apontando para a perna da menina.”

Fred não teve dúvida : ” Bisturi você sabe o que é ! – dirigindo-se ao enfermeiro. “Pega um ali na prateleira , pega gaze e álcool! ”

Imediatamente fez um corte no local da picada depois de limpar com álcool para deixar sangrar o ferimento. Nesse momento o enfermeiro desmaiou e ficou estendido no chão da enfermaria. Tagá (de tagarela,apelido do secretário do Fred) passou a ajudá-lo no que ele fazia, baseado em anos de vivência na floresta amazônica.

O que mais sei é que aplicaram o soro antiofídico na menina, levaram ela e os pais para a Casa de Hóspedes, onde se alimentaram e dormiram aquela noite, indo embora no dia seguinte. Não tenho a menor ideia se ficou boa ou não mas viver e morrer, para aqueles lados, não era encarado da mesma forma que nós da cidade grande encaramos.

Após contar tudo isso, ter passado uma semana a base super doses de dipirona, já que os tempos em que se usava cocaína nesses medicamentos já tinham passado, e tomando sopa com a cabeça virada para não chegar ao nervo exposto eu tirei de letra.

Na segunda feira embarcamos eu, minha esposa e o enfermeiro que sequer foi preciso demitir, ele mesmo pediu: -” PELO AMOR DE DEUS, DEIXA EU VOLTAR PARA BELÉM!”

Foi assim que eu perdi um de vários dentes que se seguiriam, por não dar tempo de fazer o tratamento adequado e continuamos lendo bulas para ver qual o remédio mais indicado para o que achávamos que estávamos sentindo e, lógico, com a ajuda do Fred.

Como fui parar na selva amazônica

No momento em que  me foi dada a possibilidade de ir para Porto Trombetas/PA eu não hesitei, e nem podia, em função do salário oferecido para ser Gerente de Controle da obra do porto, cidade e mineração de bauxita.

Não fazia a menor ideia de quão longe era.

Posição no mapa do Pará de Porto Trombetas até Santarém

Posição no mapa do Pará de Porto Trombetas até Santarém

link do mapa : http://goo.gl/maps/xBbg5

Nessa época, em 1974, as comunicações eram via rádio ou telégrafo e só tínhamos acesso via aérea (táxi aéreo) ou fluvial.

Nossa casa ficava no antigo acampamento que estava sendo revigorado e

Vista aérea da vila - minha casa à direita

Vista aérea da vila – minha casa à direita

eram casas de madeira.

Embora, em linha reta, a distância entre minha casa e os escritórios fossem perto, entre os dois havia uma cerrada mata amazônica cortada por um caminho para veículos.

Como minha esposa ia ficar sozinha durante os expedientes, eu almoçava em casa, mandei colocar uma cerca de mais de 1,70 em volta da casa com a esperança que isso não permitisse a chegada de animais. Mandei colocar, nas quinas da casa lâmpadas fortes que iluminavam da cerca para fora, de forma que eu pudesse ver sem ser visto.

Avon na área da casa

Avon na área da casa

Na nossa imaginação um casal de cães ia ser uma boa companhia, pelo menos durante o tempo que eu estivesse fora e assim levamos dois dálmatas Avon e Cayena.

Infortunadamente Cayena teve que ser sacrificada pois, aparentemente, se envenenou com algum sapo que ela achou ser um brinquedo

A alimentação era fornecidos por barcos que transitam pelos rios vendendo e trocando mercadorias, o avião das segundas que trazia o rancho da semana, dois filmes, jornais da semana anterior e o malote de correspondências.

Tínhamos um vaqueiro que cuidava de um pequeno rebanho de gado que ia

Açougue de Porto Trombetas

Açougue de Porto Trombetas

sendo reposto a medida que os bois ou vacas iam sendo consumidos. Quando abatiam um boi o que não era aproveitado era jogado no rio para as piranhas o que permitia que mergulhássemos tranquilamente ao lado do matadouro, onde ficava o ancoradouro.

Outra coisa curiosa é que a carne era imediatamente distribuída para a casa de hóspedes, minha casa e para a cozinha dos alojamentos dos operários. Era tão recente que ainda tinha espasmos quando a deixavam na cozinha.

Apesar de todas as dificuldades não havia outra opção para mim e, por sorte, minha nova companheira (passamos a morar juntos em 24 de dezembro de 1974 e mudamos para o Pará em fevereiro de 1975) aceitou aquela situação por dois anos, quando entãovoltamos para Niterói/RJ.

Com a vida que eu estava levando, logo logo ia estar encrencado, então o salário oferecido resolveu, nos dois anos que passamos lá, todas as minhas dívidas e ainda permitiu pagar uma pensão bastante razoável para minha ex-mulher e minha filha.

Foi assim que paramos em Porto Trombetas onde vivemos muitas histórias.

Jipe da Gerência de Controle e eu

Jipe da Gerência de Controle e eu

A ditadura quase me pega, parte final

De Niterói para Itabira

De Niterói para Itabira

Para dar um fecho definitivo nesse episódio difícil que passei em Itabira continuo a narrar os fatos que se seguiram à minha conversa com o Chefe do GEIT(Grupo Executivo de Itabira) do Departamento de Obras da Vale.

Após ter conversado com Seu Zé, e com um amigo que anos mais tarde viraríamos compadres, resolvemos passar a tomar o depoimento de todos os vigias envolvidos no fato.

A narrativa foi bastante diferente das contidas nas cópias enviadas ao GEIT, mostrando que houvera uma nítida distorção dos fatos como também manipulação psicológica dos vigias(coisa comum naqueles tempos).

O que ninguém sabia era que, na minha família, haviam militares e alguns com patentes elevadas, e para um deles liguei pedindo uma orientação.

Retornei à sala do Dr. Roberto(nome fictício) e mostrei todos os depoimentos tomados, além de lembrá-lo que no mês anterior, o Gerente do Departamento de Obras nos havia visitado e na cancela olhou firmemente para nosso vigia enquanto seu motorista dizia que aquele que ali estava era o chefe do DO.

Esse vigia, escolhido a dedo pelo Seu Zé era, além de grande e forte, educadíssimo:

-“Peço desculpas mas tenho que anotar o número da plaqueta de patrimônio do veículo, assim como a chapa, para poder conferir e lhe entregar um cartão para o estacionamento. Não se preocupe poque é bem rápido!” e assim foi.

Ao chegar na sala do Dr. Roberto ele falou:

-“Porra, tive que ficar parado na cancela para verificação!” e antes que o Dr. Roberto completasse o movimento de pegar o telefone, certamente para me dar uma bronca, continuou: – ” Você está de parabéns, ninguém deve entrar sem ser identificado!”

Então, voltando a carta acusatória de tentar desmoralizar a Área de Segurança da Itabira, eu pedi ao Dr. Roberto que me mandasse ao Rio pois iria falar com um parente meu do exército e tirar tudo a limpo.

Forte São João no Rio de Janeiro

Forte São João no Rio de Janeiro

Assim foi, vim ao Rio conversei com esse meu parente e ele entrou em contato com um amigo que assuntou na Vale(área de segurança) a minha situação. Nada havia chegado de Itabira para o General chefe da Segurança da Vale, que contivesse meu nome ou falasse do incidente.

Aliviado e mais confiante voltei para Itabira, tendo na bagagem um manual para vigilância, publicado pelo exército.

Em decorrência da minha viagem e do que tinha apurado passo a narrar a patética história de como a sensação de poder faz um ser humano se sentir um gigante e de quando puxado o seu tapete ele revela sua real dimensão que vai se reduzindo ao tamanho de uma formiguinha sem garras.

No dia seguinte ao meu retorno fui direto à sala do Dr. Roberto para relatar o que havia apurado e pedir que ele convocasse uma reunião entre nós dois e o Chefe de Segurança de Itabira, o que ele fez de imediato.

Entrei na sala e o Chefe da Segurança, de pé tentando intimidar como se fosse um ser superior. Nos sentamos e a reunião começou:

– “Então Roberto(usando o primeiro nome como se fosse um igual embora tivesse um cargo mais baixo que o do chefe do GEIT) o que vamos fazer com o Araken?”

-” Vamos deixar que ele mesmo se defenda.” retrucou o chefe do GEIT, passando a palavra para mim.

Com as costas quentes da minha viagem ao Rio eu disse : ” Gostaria que fosse aberto um inquérito administrativo e então que se julgue se as ações determinadas por mim e executadas pelos vigias do GEIT foram exageradas e desmoralizantes.”

O rosto do chefe da Segurança embranqueceu :- “Não precisamos chegar a esse ponto, podemos resolver tudo entre nós mesmos” – retrucou.

Dr. Roberto : – “Não! Se você escreveu essa carta acusatória, grave, contra meu funcionário eu apoio totalmente a abertura de um inquérito administrativo. Por que não?”

Barulho de tijolos caindo e rolando pelo chão. O Chefe da Segurança em Itabira desmoronou.

-“Na verdade eu não mandei o original para o Rio de Janeiro, até rasguei, só passei uma cópia para que meus vigias tomassem conhecimento. Para não perderem a moral, vocês entendem? – balbuciou o Chefe da Segurança, a esta altura, reduzido a sua real proporção.

Dr. Roberto continuou : -“Quem me garante que você não mandou ou não vai mandar essa carta? Afinal é só sua palavra e eu não posso ter um funcionário acusado e ficar por isso mesmo.”

– “Vamos fazer assim, essa carta não foi enviada, eu vou fazer outra elogiando a segurança do GEIT, e eu mando uma cópia com o protocolo do Gerência de Segurança do Rio de Janeiro.” – respondeu o Chefe da Segurança.

Dr. Roberto: -“E o Araken, como é que fica nessa, afinal você cita ele na sua pseudo carta.”

“Podemos fazer assim” – propôs o Chefe da Segurança – “a área de Segurança do GEIT não existe oficialmente e o Araken é somente o supervisor de controle do patrimônio. Eu o indico para fazer parte da Segurança Institucional aqui de Itabira e com isso fica garantido que nada foi dito contra ele”

Acertadas as ações, que foram rigorosamente cumpridas, terminamos a reunião. Pelo sim, pelo não ainda guardo todos os documentos daquele incidente.

Para aqueles que ainda acham que a ditadura fez bem ao Brasil, desconhecem os tantos Chefes de Segurança que se formaram pelo País. E não adiantava você se achar inocente, até você ser inocente, se um deles resolvia que você era culpado, você era culpado e pronto. Pagaria, como muitos fizeram, por ter passado pela vida dessas pessoas.

Minha sorte foi ter alguém muito acima desses indivíduos, dentro do sistema, que me salvou. Esse é o fim de um entre milhares de episódios iguais e piores havidos nos 20 anos da ditadura militar.

A Ditadura quase me pega ou da lealdade

Em 1972, trabalhando na Cia Vale do Rio Doce( hoje Vale S.A.) fui transferido para Itabira, mais especificamente o Departamento de Obras, GEIT – Grupo Executivo de Itabira. Naquela época estavam construindo as instalações da Concentração de Minério de Ferro.

De Niterói para Itabira

De Niterói para Itabira

Explico: para ser vendável o minério de ferro tem que ter uma granulometria definida e o que não atingia esse tamanho era despejado no que se tornou um grande monte de minério fino. Contam até uma estória de que em uma chuva forte houve um deslizamento que cobriu uma pá carregadeira. O deslizamento foi tão grande que nunca mais acharam o equipamento.

Unidade de Concentação de Minério - Vale - Itabira - MG

Unidade de Concentação de Minério – Vale – Itabira – MG

No GEIT(Grupo Executivo de Itabira), do DO, criaram uma sub-contadoria na qual eu foi ser o supervisor, depois juntaram o fundo financeiro para pequenas compras e a área de patrimônio. Com essa junção eles resolveram que se a minha área era responsável pela identificação e controle dos bens do GEIT também seria pela segurança deles e acrescentaram a área de Segurança Patrimonial, que ninguém queria.

A área estava tão largada que havia um vigia que não tinha uma perna. Quando alguém influente(político) queria fazer um agrado para a população mais carente mandava ser “fichado” * no DO e, como geralmente nem alfabetizados eram, admitiam como vigias.

Todos os vigias eram terceirizados e no meio deles eu tive a sorte de encontrar uma das pessoas mais honestas e leais de toda a minha vida. Posso até conhecer alguém igual mas superior, não. Seu nome completo não lembro mas para todos era Seu Zé.

Lembrando que nessa altura estávamos em 1974 e o ditador presidente era o General Emílio Garrastazu  Médici até 15 de março daquele ano, substituído pelo General Ernesto Geisel, além do que estava em plena vigência o AI-5 ( Ato Institucional Número 5) .

Na região de Itabira havia outros departamentos como o DE (Departamento da Estrada[de Ferro]) e o DM (Departamento de Mineração) que pelo seu porte era o mais importante dos departamentos em Itabira.

Cada departamento tinha sua área de segurança patrimonial e a do DM era, por assim se dizer, superior às demais.

Centro de Itabira - MG

Centro de Itabira – MG

Nessa época, além de trabalhar para a Vale eu dava aulas na Escola Técnica de Comercio da cidade. Naquele ano haviam tirado datilografia do currículo e colocado processamento de dados. Como eu lidava com esse assunto já que toda a contabilidade da Vale era processada em seu Centro de Processamento de Dados, fui chamado e aceitei ser professor daquela cadeira.

Pois bem, voltando ao Seu Zé, ele se mostrou um líder nato e aos poucos, sem que eu precisasse orientá-lo foi organizando a estrutura da área de segurança do GEIT, para mim.

Lembro que antes de entrar na sala onde eu e o pessoal da contabilidade, finanças e patrimônio trabalhávamos ele colocava o capacete de segurança, seguro junto ao corpo, abria a porta e falava :

-“Dá licença, Doutor Araken?” e não entrava se eu não fizesse um sinal para que viesse. Para ter uma ideia de quem é esse homem ele guardava todas as pilhas que os vigilantes vinham trocar e anotava a data da troca em um caderno para evitar que algum deles levasse as pilhas novas para casa.

Para nosso infortúnio, em dado momento, foi utilizado o prédio que era dos bombeiros para escritórios do Serviço de Segurança do DM. Era como você ter uma sala com seu pessoal e seu chefe viesse trabalhar dentro da sua sala. Afinal quem mandava em quem e/ou em o que.

Também tínhamos um grave problema de roubo em nosso almoxarifado a céu aberto e com entrada e saída de peões( trabalhadores braçais) para bater o ponto ao final do expediente.

Para piorar a situação havia cortes de luz na cidade incluindo a área do GEIT.

Juntando tudo isso eu havia dado uma ordem que se faltasse luz, fechassem os portões da nossa área( normalmente apenas uma cancela bloqueava o acesso) e revistassem todo e qualquer veículo que quisesse sair de lá. Óbviamente essa ordem foi dada tempos antes da Segurança do DM se mudar para dentro de nossas instalações.

Data: por volta de 20 a 25 de março, vésperas da comemoração da implantação da ditadura no Brasil que todos sabem é 31 de março.

Hora: aproximadamente 20:00 h pois estava dando aula na FIDE (Fundação Itabirana Difusora de Ensino), no curso técnico.

Fato: acaba a luz em toda a cidade, inclusive na região do Departamento de Obras. Ordens cumpridas e os portões foram fechados.

Desdobramentos:

– Ainda na FIDE chega Seu Zé, no jipe da segurança do GEIT e me fala que todas as minhas ordens foram cumpridas e que a nossa área estava adequadamente vigiada. Que teria havido um probleminha mas que no dia seguinte ele me relatava.

– O “probleminha”, que se revelou um problemão, tinha sido que, em função das minhas ordens, um carro da segurança do DM( em tese meus superiores) havia sido impedido de sair da minha área sem ser revistado.

Tentaram dar uma carteirada, coisa muito mais comum, naquela época :

– “Somos da Segurança do DM e vamos sair, abre essa porra!” – disse um deles

Como falei antes, Seu Zé escolhia muito bem quem ia trabalhar com ele e nem que fosse o presidente da Empresa os vigias não iam permitir sair sem revistar, exatamente o que aconteceu. Os seguranças desceram do carro que foi totalmente revistado e só assim saíram da nossa área.

No dia seguinte quando a kombi que levava os supervisores chegou na cancela já havia um recado para mim:

-” O Dr. Roberto(nome fictício) falou para o Sr ir direto para a sala dele!” – me falou um vigia.

Chegando na sala dele é que pude entender toda a dimensão do problema.

O Chefe da Segurança tinha retornado com os vigias dele que tinham sido detidos e mais dois carros com mais vigias da segurança do DM. Tinha retido (nome suavizado para prendido) todos os meus vigias que estavam no turno da noite e só liberou no dia seguinte, após tomar depoimento de cada um, que obviamente disseram que a ordem era minha.

Nas mãos do Roberto uma cópia de carta endereçada ao general responsável pela área de segurança de toda a Vale, me acusando de estar, com a retenção do carro da vigilância dele, querendo desmoraliza-los “às VÉSPERAS DA COMEMORAÇÃO DA REVOLUÇÃO DE 1964”. Relembro : Ano 1973, em vigor o AI-5 e só de pensar as consequências quase desmaiei.

Retornando para minha sala com a carta na mão encontrei Seu Zé me esperando:

– “Me desculpe, Dr. Araken, eu não falei o que havia acontecido porque não ia adiantar nada o Dr. tentar fazer alguma coisa!” – me disse ele.

– “E os vigias?” eu perguntei.

– “Estão lá no meu escritório( uma casinha de madeira que tinha mandado construir para ele) se borrando de medo mas só vão sair quando o Dr. mandar.” e continuou “vamos fazer um depoimento meu em que eu assumo tudo que aconteceu, que a ordem foi minha e o Dr. não sabia de nada. Eu sou peão, saio daqui vou para outra obra e o Dr. não pode ser prejudicado.”

Esse homem semi alfabetizado, com esposa e filhos para criar, que me conheceu não havia nem um ano, que podia ter ficado quieto para que a corda não arrebentasse do lado mais fraco(o dele), se oferece em sacrifício, no meu lugar?

O escrito aqui é para enaltecer o caráter de um homem simples mas de ética invejável, características humanas muito difíceis num ser humano.

Essa história teve mais desdobramentos que ficam para uma outra hora.

Tempos depois, uns treze ou mais anos passados do fato narrado, em uma viagem de serviço às dependências da Vale, na cidade de Araxá, conversando com o Gerente no corredor do escritório, escuto uma voz:

-“Dr. Araken, ainda lembra de mim?” me virei e dei de cara com Seu Zé. Com o mesmo jeito alto, magro, rosto enrugado pela vida, bigodão, agora funcionário efetivo da Vale.

Me virei para o Gerente e disse : – “Você tem aqui o homem mais trabalhador, honesto e leal que já conheci na vida.”

Nos abraçamos, recebi um convite para visitá-lo em sua casa, que eu fui, e a vida se seguiu.

*fichado : termo usado que correspondia a contratação de uma pessoa. No nosso caso eram sempre contratados em uma empresa de mão-de-obra terceirizada.